O vôo para a sacralidade do feminino

Enviado em 08/12/2008 (5608 leituras)

Uma das maneiras de vivenciar o Sagrado Feminino e a bruxaria manifesta-se na relação dialética de experimentação da sacralidade por meio de uma inconsciente negação do feminino, contemplando e reconhecendo, cada um, dentro de si, a misoginia[1], reproduzida durante séculos e séculos de dominação masculinista. Afinal, somos maravilhosas Deusas nutridoras, e, justamente por isso, somos cingidas em carne, por marcantes e profundas feridas abertas pelo patriarcado devastador que insistimos alimentar em algum ponto longínquo da alma!

Esse é o primeiro susto: olhar para o exterior a partir da lambida de nossas feridas mais internas, pois o mundo, sozinho, não nos fere, a menos que tenhamos a afinidade reativa com a chaga externa. É simples afinidade, atração, causa e efeito newtoniano ou, ainda, de proximidade quântica!

Porém, como bem sabemos, é mais simples, fácil e indolor lançar no outro o peso de nossas dores, pois, quando fazemos isso, desviamos o foco das atenções e esquecemos, um pouco, do problema, ao invés de buscar as profundas marcas dentro de nós. Afinal, ninguém gosta de sentir dor: sentir dor simplesmente... Dói.

Toda grande Deusa nutridora e misógina possui, em algum momento, um referencial masculino também misógino de onde retira o modelo a superar, numa contínua relação de amor e ódio. Ausência paterna em momentos essenciais, presença castradora na repressão que pode beirar violência psíquica e física; figura forte e marcante da mãe que tudo faz pela prole: eis a receita para um futuro de encontros com espelhos misóginos.

Não tenho a menor vergonha de afirmar que o primeiro foco de atração da misoginia e do afastamento do sagrado reside em mim! Torna-se, agora, mais fácil perceber a razão pela qual falei em afastar o Sagrado Feminino, para, depois, aproximar-me dele?

Dessa maneira, não acho que devemos culpar os elementais, os elementos, as conjunções planetárias, ou, ainda Brighit, Danu, Macha, Cerridwen, Morrighu, Oghma ou Dagda, por aquilo que é simplesmente a construção de um caminho, um caminho reproduzido no ataque ao feminino.

Não, simplesmente não cabe isso aqui, pois, se coubesse, o caminho já teria um fim sem, ao menos, começar, diante de um discurso muito mais compatível com a culpabilidade judaico-cristã do que em relação à busca do Sagrado Feminino. A transposição para o Sagrado não é feita a partir da atribuição dos percalços aos deuses, mas, antes, do reconhecimento que somos divindades seguindo, cada qual e
interdependentes, na opção de nossas escolhas.

Depois de trilhar tanto o caminho do achava ser o sagrado, dentro das condições que meu lar doméstico possibilitava, parti, enfim, para a socialização no caminho da Grande Mãe. De início, tímida, reticente em relação à escolha, mas, antes de tudo, disposta a cair e levantar. Depois de tanto vivenciar, cansei de observar as tradições, os rituais e as contemplações divinais a partir de uma mera transposição judaico-cristã para o caminho da Deusa. Acho até que briguei com Ela, depois de ter rompido com Deus.

Em muitos momentos em alguns dos covens que visitei achei estar em uma missa, ou, ainda, em um culto, repleto dos mesmos dogmas de uma vida inteira. Hoje tenho cautela em observar na estrutura de qualquer tipo de poder a exata medida da revelação de um Cronos castrador, que devora seus filhos para que esses não ousem questionar.

Talvez seja teimosia, mas penso que em nível de humanidade, o exercício de poder supõe, em vários níveis, limitação do outro. Por isso a prática de bruxaria esteve - ao longo do passado histórico ocidental - relacionada à hierarquia familiar, já que era realizada dentro de casa e, mais precisamente, à beira do caldeirão borbulhante, repleto de receitas mágicas. É muito forte a relação de poder na Grande Arte, pois deriva do núcleo de poder familiar. Como, então, vivenciar o Sagrado, com a cautela de observar o poder e suas implicações?

Simples, observando que o percurso e seus limites somente podem, ao final, ser escolhidos por quem está seguindo, caindo, levantando e, sobretudo, vivenciando, não podendo ser imposto, de fora para dentro, sob pena de se perder o foco da identidade divina e sagrada.

Nos vários grupos que freqüentei, observei fenômenos curiosos, como os chamamentos da Deusa para resolver os mesmo problemas que o Deus cristão resolvia, percebendo assim, a mesma castração milenar, com uma formatação apenas reformulada. Óbvio que a maior das mazelas humanas não poderia deixar de ser o coração e a necessidade de preenchimento da carência, pois nunca vi tantos
rituais para atração de relacionamentos, amores, maridos e noivos, numa demonstração de completo desespero ante a solidão.

Nesse interessante caminho de desventuras com a Grande Mãe, minha alma desistiu um pouco e saiu de férias, porque, no auge da sincronicidade, vibrei internamente a atração de relacionamentos altamente misóginos, castradores, destruidores da sensibilidade que sempre habitou meu invólucro. O mais interessante foi a seqüência entre eles, porque, a cada relacionamento, a agressão que eu imprimia a minha alma  aumentava, devastando os pedaços ainda intocados da minha sacralidade.

E quando mais eu me relacionava com a misoginia, mais a Grande Mãe era procurada fora de mim, na interação com os rituais, covens e pessoas. Eu não tinha noção do preço existencial pesado eu haveria de pagar pela busca externa do que haveria de encontrar, muito tempo depois, dentro de mim. Mas, talvez, meu caminho também não seria escrito se eu não experimentasse tantas sensações que hoje entendo agregarem minha alma de maneira bem tranqüila. Com algumas seqüelas, mas, enfim, serenamente.

A perda do Sagrado começa a partir do momento em que nos esquecemos (ou em que não mais sabemos) que a Deusa habita em nós, deixando nossa identidade divina de lado, para, em nome da aceitação pelo outro, agregarmos valores e tomá-los como imutáveis.

Para mim, esse caminho de “esquecimento da Deusa” começou em doses homeopáticas quando observava que os namorados não gostavam muito das minhas unhas pintadas de vinho - quase preto – dos meus anéis volumosos nos dedos, das saias rodadas, dos incensos, além, claro, das conversas com os animais e as plantas, ou, ainda, do cabelo ruivo Lilith, já que o imaginário popular misógino passa pela candura do amaciamento da escova progressiva e da clareza dos cabelos louros angelicais da submissa Eva intercostal (não estou criticando a “lourice”, mas a motivação submissa que leva as pessoas a pintar o cabelo por outro motivo que não satisfação própria).

Tudo isso chama a atenção de quem não está nessa linha de freqüência: enquanto eu era Lilith, a egrégora de força assustava os namorados. E, durante os relacionamentos - os três mais impactantes e misóginos relacionamentos de toda minha existência nesse plano terrestre – a tônica era a mesma: eu iniciava o relacionamento sendo a Deusa encarnada, mas, depois, cedia, transmutando-me para algo que, longe de ser eu, era um modelo construído pelo outro, um Golum em busca do anel de poder.

Dentro disso, condicionava-me a fazer tudo que não queria: agredia meu cabelo, pintava de outra cor que não a que apreciava, comprava roupas de outros estilos, saí para lugares que não tinham conexão com meus interesses. Tudo em nome do “grande amor” encantado, embalado pelas histórias da princesa adormecida, encantada pela bruxa má e acordada pelo príncipe com um beijo cinematográfico e... insosso. Argh!

Senti no último relacionamento – o mais marcante, pois, a partir dele esse encontro com o Sagrado está sendo maravilhosamente possibilitado – que minha alma saiu de férias. Aham, férias, do tipo: “Ei, não estou gostando do que você está fazendo comigo e, sem diálogo, não dá! Quando você falar comigo e me escutar mais voltarei! Tchau, vou para Lemúria!”

Sim, às vezes penso que ante toda a agressão, minha centelha divinal pediu um “tempo” para minha personalidade, ausentando-se em prolongadas férias de um ano e quatro meses. É a única explicação, apesar de ter pensado na possibilidade de ingresso em um coma profundo do espírito, que deixou meu corpo vagando por aí
como um verdadeiro farrapo.

Por isso me vi negando o Sagrado Feminino em mim para, depois, voltar a dar as mãos no grande passeio cósmico com a Grande Mãe! Antes de tais experiências não trazia ou acreditava na certeza de vivenciar a sacralidade feminina, muito menos de internalizá-la naturalmente. Vi-me praticando, ritualizando e mantrando sem a
menor convicção e, dentro disso, falando para o silêncio do vazio em meu coração, um vazio de tristeza, já que, por óbvio, a Deusa não estava viva dentro de mim. Ela era um espectro de deidade, uma fórmula buscada fora de mim e que me dava uma ilusória sensação de segurança. Mas ao menor sinal de perigo, a fortaleza ruía e meu castelo “sólido” mostrava-se feito de areia fina e volúvel ao menor sopro de uma leve brisa.

Foi num dia 15 de março... Diante do espelho que a Deusa reservou para mim – o então companheiro de jornada – vi a chama flamulante da Grande Mãe reacendendo a força vital da legítima guerreira Boudicca que sempre esteve aqui, lutando e vivendo - no contraponto entre força e poesia – diante dos abalos da vida.
Naquela noite de prenúncio de Outono vi no outro refletido em mim a força do martelo patriarcal, que fere, julga e tenta matar a liberdade na equiparação entre homens e mulheres independentes, autônomos. Foram muitas as referências na discussão daquela noite, mas as guardo silenciosas dentro de mim porque isso propiciou o retorno maestral da minha alma que estava em férias.

Isso é bem óbvio para os que lêem nas entrelinhas. Falar sobre sacralidade feminina e seus atributos inerentes adentra os aspectos dolorosos contidos nos momentos históricos de negação do aspecto divinal da mulher. Aliás, antes disso, passa também pela discussão sobre gênero feminino, em termos de construção cultural, histórica, religiosa ou, ainda, condição determinada biologicamente.

Prefiro falar no Sagrado longe dos bancos universitários, porque a discussão “científica” retira a poesia da Sacralidade Feminina. A racionalidade pós-moderna, nesse sentido, é bem chata, pois atinge como um punhal afiado, o movimento poético e mitológico da vivência da divinização da mulher. A “ciência” que me perdoe, mas a poesia é a linguagem da alma, essencial para transpor a frieza da razão!

Por fim, de tudo isso até aqui, hoje sinto, penso, acho e respiro a idéia que embala minha vida, meus estudos, meu viver: toda busca do Sagrado Feminino passa pela perda da identidade com o sagrado feminino, começando nos lares artificialmente patriarcais, repleto de preconceitos e limitações da alma feminina.

Aliás, toda mulher guarda em suas entranhas o filete de DNA histórico misógino, por conta da força com que tal discurso destruidor povoou o imaginário, desde os contos de fadas de princesas adormecidas, salvas pelos príncipes saltitantes, até os condicionamentos em níveis mais sutis, a exemplo das mensagens dos programas de televisão, anestésicos de um feminino contundente e reprodutores de
um feminino amordaçado.

Como sair disso? Aceitando a Deusa, mesmo que seja, num primeiro momento, por meio da sua negação, porque, ao final, nessa dialética, o caminho é vivenciado, sempre, de uma forma, ou de outra. Quando nos dispomos a negar o que trazemos incrustado no coração, deparando-nos com nossa sombra, aproximamo-nos dela, envolvemos a Deusa Negra com um caloroso abraço e, daí, tudo se dissipa e
recolhemos os fragmentos para a recomposição de nossa alma, plena, intacta. Firme, forte, poderosa e plena. Essa é a maior das invocações... Hey ho!

Por Audrey Donelle Errin
Pesquisadora do Sagrado Feminino, dentro do foco celtíbero.

Citação:
"Conectada aos mistérios da ancestralidade da terra."
Sagrados Segredos da Terra
www.sagradosegredosdaterra.blogspot.com.br

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[1] Misoginia é a aversão ao feminino, a partir da noção de inferioridade da mulher em relação ao homem. Importante ressaltar que a misoginia tanto pode estar presente na mulher como no homem, pois não se relaciona ao sexo, mas, sim, ao gênero.

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